sábado, 27 de agosto de 2016

Portões da Prática Budista - Chagdud Tulku Rinpoche

Chagdud Tulku Rinpoche

Pondo a Roda em Movimento 

Por que é que precisamos de um caminho espiritual? 
Vivemos em um tempo muito ocupado, em que nossas vidas transbordam de atividades - algumas alegres, algumas dolorosas, algumas gratificantes, outras não. 
Por que deveríamos reservar tempo para fazermos práticas espirituais? 
Conta-se muito a história de um homem de uma região no norte do Tibete que decidiu fazer uma peregrinação com seus amigos até o Palácio Potala, a residência do Dalai Lama em Lhasa, um lugar muito sagrado. 
Era uma viagem que marcava uma pessoa por uma vida inteira. Naqueles dias não havia carros ou veículos de qualquer espécie na região, e as pessoas se locomoviam a pé ou a cavalo. demorava-se bastante para chegar a qualquer parte, e era perigoso ir muito longe, já que inúmeros ladrões e bandidos assaltavam viajantes incautos. 
Por esses motivos, a maioria das pessoas nunca deixava sua região natal, do nascimento à morte. A maioria delas nunca havia visto uma casa; moravam em tendas pretas tecidas com fibra de pêlo de iaque. 
Quando esse grupo de peregrinos finalmente chegou em Lhasa, o homem do norte ficou assombrado com o Palácio Potala e seus múltiplos andares, suas muitas janelas e a vista espetacular da cidade que se descortinava do interior. 
Ele enfiou a cabeça por uma abertura bem estreita que servia de janela para ter uma visão melhor, girando a cabeça para a direita e para a esquerda, enquanto olhava a vista lá em baixo. Quando seus amigos o chamaram para ir embora, ele puxou a cabeça para trás, com um solavanco forte, mas não conseguia tirá-la da janela. Ficou muito nervoso, puxando de um lado e de outro. 
Por fim, concluiu que estava realmente entalado. Então, disse a seus amigos, "Podem ir para casa sem mim. Digam à minha família que a notícia ruim é que morri, mas a notícia boa é que morri no Palácio Potala. Haveria lugar melhor para alguém morrer?" 
Os amigos eram também gente muito simples, de modo que, sem muito refletir, concordaram e foram embora. Algum tempo depois, o zelador do templo apareceu e perguntou, 
"Mendigo, o que você está fazendo aí?"
"Estou morrendo", ele respondeu.
"Por que você acha que está morrendo? "
"Porque minha cabeça está entalada."
"E como é que você a pôs aí?"
"Eu enfiei fazendo assim." 
O zelador respondeu, "Então, tire-a da mesma maneira que entrou!"
O homem fez o que o zelador sugeriu, e se soltou. 
Como esse homem, se conseguirmos enxergar onde é que estamos presos, poderemos quebrar nossas amarras e ajudar os outros a fazer o mesmo. Mas, primeiro, precisamos entender como viemos parar onde estamos. 
Durante toda a vida, embora cada um de nós busque e, às vezes, encontre felicidade, ela sempre é temporária; não conseguimos fazer com que dure. É como se estivéssemos continuamente atirando flechas, mas no alvo errado. para encontrarmos felicidade duradoura, precisamos mudar o nosso alvo, concentrando-nos em erradicar o sofrimento nosso e o dos outros, não temporária mas permanentemente. 
A mente é a fonte tanto do nosso sofrimento quanto da nossa felicidade. Pode ser usada de modo positivo para criar benefícios ou de modo negativo para criar malefícios. Embora a natureza fundamental de todos os seres seja uma pureza imortal, que existiu desde sempre, sem começo - o que chamamos natureza búdica - , nós não reconhecemos essa natureza. 
Em vez disso, somos controlados pelos caprichos da mente ordinária, que vai para cima e para baixo, para a direita e para a esquerda, produzindo pensamentos bons e ruins, agradáveis e dolorosos. Nesse meio tempo, plantamos uma semente a cada pensamento, palavra e ação. 
Com a mesma certeza que a semente de uma planta venenosa produz frutos venenosos, ou uma planta medicinal cura, as ações maléficas produzem sofrimento e as ações benéficas, felicidade. 
Nossas ações viram causas, e dessas causas naturalmente vêm resultados. Tudo que é colocado em movimento produz um movimento correspondente. 
Se você joga uma pedra numa lagoa, formam-se ondulações ou anéis que correm para fora, batem na margem e voltam. O mesmo se passa com o movimento dos pensamentos: ondulações correm para fora, ondulações retornam. 
Quando os resultados desses pensamentos chegam de volta, sentimo-nos vítimas indefesas: estávamos inocentemente vivendo nossa vida - por todas essas coisas estão acontecendo conosco? O que acontece é que os anéis estão voltando para o centro. Isso é carma. 
A mente ordinária é cheia de oscilações e turbulência. Se não há uma força que a controle e controle seus efeitos sobre o corpo e a fala, somos jogados para cima e para baixo, para frente e para trás: nossa realidade fica igual a um passeio de montanha russa. 
Na verdade, é mais parecida ao girar de uma roda. Pomos uma roda em movimento e, a cada vez que reagimos, damos um novo impulso nela, ficando presos em seu movimento perpétuo. Dessa forma, nossa experiência da realidade continua a girar em ciclos, com todas as suas variações, vida após vida. 
Assim é interminável o samsara, a existência cíclica. Não compreendemos que estamos vivenciando resultados que nós mesmos criamos, e que nossas reações produzem ainda mais causas, mais resultados - incessantemente. 
Pelo fato de termos sido nós mesmos que armamos a enrascada em que nos encontramos, cabe a nós mudá-la. Uma pessoa que esteja com o cabelo embaraçado e oleoso, e olhe num espelho, não irá conseguir limpar sua imagem esfregando o espelho. 
Uma pessoa que tenha uma disfunção biliar terá uma percepção distorcida de cor; verá uma superfície branca - quer seja uma montanha nevada à distância ou um pedaço de pano branco - como sendo amarelada. 
O único modo de corrigir a visão defeituosa é curar a doença. Tentar alterar o ambiente externo não terá resultado algum. 
Algumas pessoas pensam que o remédio para o sofrimento está nas mãos de Deus ou Buda, em algum lugar externo a elas. mas as coisas não são assim. O próprio Buda disse a seus discípulos, "Eu lhes mostrei o caminho que leva à liberdade. Seguir por esse caminho é algo que depende de vocês". 
A mente, quando usada de modo positivo - para gerar compaixão, por exemplo - , é capaz de criar grandes benefícios. Pode parecer que esses benefícios vêm de deus ou Buda, mas são simplesmente o resultado das sementes que plantamos. 
Embora com os ensinamentos do Buda recebamos a chave do conhecimento que nos permite transformar, pacificar e treinar a nossa mente, somente nós podemos descerrar sua verdade mais profunda, expondo nossa natureza búdica e suas capacidades ilimitadas. 
Nossas experiências atuais na vida são de relativa boa sorte. Muitos são os que experimentam sofrimento muito pior que o nosso. Assolados pelas dores implacáveis da guerra, doença e fome, não têm meios para mudar sua situação; parece não haver saída. 
Aos contemplarmos as dificuldades em que essas pessoas se encontram, compaixão brota em nosso coração. 
Ganhamos inspiração para não desperdiçarmos nossas circunstâncias bem afortunadas, mas sim, usá-las para criar benefícios para nós mesmos e para os outros, benefícios que estejam além da felicidade provisória que vem e vai, além dos ciclos infindáveis dos sofrimento samsárico. 
Somente ao revelar por inteiro a verdadeira natureza da mente - ao alcançar a iluminação - podemos encontrar felicidade duradoura e ajudar os outros a fazer o mesmo. Essa é a meta do caminho espiritual.